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Feco Hamburger e o Tempo Longo
Em 2004, na individual que apresentou na Pinacoteca do Estado, intitulada “Noites em claro”, Feco Hamburger mostrou uma série de fotografias em que a questão central era o “tempo longo” dos astros celestiais, captados por meio de tomadas de longa exposição. Outra questão primordial nas fotos então exibidas – e que tanto surpreendeu e encantou o artista – foi a presença de uma luz misteriosa nas fotos, muito embora todas tivessem sido realizadas durante a noite. Segue o testemunho de Hamburger sobre essa experiência:
“Movido pela vontade de registrar a órbita das estrelas, apontei a câmera para o vale e esperei, junto à câmera aberta, por 35 minutos. Revelado o filme, qual não foi minha surpresa: o céu estava azul, o vale estava verde, e a flor da primavera coloria o plano. O tempo de exposição não foi suficiente para registrar as estrelas da maneira que eu esperava. Mas minha atenção estava totalmente voltada para aquele aparente mistério: como era possível a escuridão da noite se transformar naquela fotografia? (…) A fotografia de longa exposição permite o acúmulo da luz existente, mas não visível aos nossos olhos, em um único fotograma, imprimindo na película o registro do tempo. Diferentemente de nosso olhar, que registra senão instantâneos. E a relação entre a luz no escuro o movimento e o tempo, passou a ser o foco de minha abordagem…”
Naquelas fotos expostas em 2004 ficava patente o quanto o encantamento dessa nova descoberta ainda não alcançara a condição de norte de sua busca, ou dos encontros do artista com o seu fazer. Ali estavam fotos de vales, aeroportos, a curva de uma estrada, a paisagem urbana vista de uma janela… Evidentemente as luzes celestes estavam lá, assim como toda a misteriosa claridade da noite fotográfica (sim, esse mistério que encantou Hamburger é dado pelo meio fotográfico, não pelo referente). No entanto, o caráter, por assim dizer, pedestre da maioria dos locais escolhidos para servirem de cenário das fotos, misturava-se à gravidade do tempo longo dos corpos celestiais captados. Uma mistura com dividendos estéticos muito estimulantes.
Já no conjunto de fotos que Hamburger agora oferece à visitação pública no Centro da Cultura Judaica, o dado circunstancial das cenas escolhidas para as fotos mostradas em 2004 dá lugar a uma outra situação. Ao invés da vista da janela de um apartamento anônimo da metrópole, ou dos reflexos a piscina de uma casa, o artista apresenta imagens captadas nos desertos de Israel e da Jordânia. Por mais circunstancial que possa ser uma visita a esses lugares, eles, em si mesmos, nada possuem de transitório. Pelo contrário.
A dimensão exorbitante de um deserto cria no observador uma sensação avassaladora e de potência tão definitiva que, no âmbito da estética, só poderia ser traduzida pelo conceito de “sublime”. Além do belo, muito além do pitoresco, a busca do sublime na arte foi muitas vezes tentada, mas poucas vezes alcançada. Turner, na pintura, sem dúvida é um exemplo notável. Embora tente, não consigo encontrar uma contrapartida no universo fotográfico, muito embora vários tenham tentado no exterior (Edward Weston), e no Brasil (Marc Ferrez).
Em algumas dessas novas fotografias de Hamburger, à imensidão imutável, sem tempo, do deserto, o artista conecta o percurso da luz de um automóvel que passa. O “tempo longo” do deserto (o deserto se transforma, mas de maneira praticamente imperceptível para nós) é confrontado com o tempo breve, o fluxo veloz de uma luz que passa ao longe. No entanto, essa luz do automóvel só é passível de ser fixada na imagem pelo tempo longo de exposição da câmera.
Notem o embaralhamento poético das fotos de Hamburger: em um lugar onde o tempo parece não existir, ela capta a velocidade (no tempo e no espaço) por meio de um procedimento que usa a extensão do tempo sempre célere da fotografia com o intuito de constituir sua proposta visual. Ou seja: o artista manipula o meio para a construção de um discurso ficcional sobre a transitoriedade do imutável ou, em última instância, sobre o homem e a impossibilidade de eternizar-se assim como o deserto é (ou parece ser) eterno. Aqui temos a fotografia partindo do referente, mas, por meio da manipulação do aparato, indo além dele para alcançar uma dimensão alegórica insuspeita num primeiro olhar.
Em outras fotografias da série, o artista contrapõe à aparente imobilidade do deserto, o ritmo veloz dos astros celestiais (fotos que estabelecem relações quase diretas com aquelas mostradas em 2004). Aqui a estratégia de manipulação da câmara, transformando o tempo ínfimo de abertura do diafragma em tempo estendido, capaz de captar o caminhar das estrelas, é utilizada para conferir ritmo (movimento, tempo) à composição. Esse ritmo, essa velocidade de fato mentirosa (mentirosa porque, sem o auxílio do aparato fotográfico não conseguimos captá-la), opõe o caráter estático do deserto da Jordânia ou de Israel (e aqui o que menos importa é saber a identidade do referente) à fictícia (aos nossos olhos) celeridade das estrelas.
Não é comum, sobretudo na fotografia contemporânea internacional, o uso de expedientes tão tradicionais quanto a exposição longa, para a produção de imagens que tenham como objetivo serem contempladas fora da voracidade dos meios de comunicação. Nos circuitos em que a fotografia é usada como meio artístico hoje em dia prevalece quase sempre a imagem direta, propositadamente destituída de qualquer índice “autoral”, muito embora saibamos todos o quanto a questão autoral ainda joga um papel fundamental no circuito internacional de arte.
Aqui no Brasil também são raros os artistas que fazem uso da longa exposição. Ainda presos à necessidade da fotografia não escapar do referente (a questão da “realidade nacional” persiste como questão para muitos fotógrafos), ou então ligados à experimentação com os meios digitais, a estratégia usada por Hamburger também é difícil de ser percebida na produção de seus colegas locais.
Essa singularidade da produção de Feco Hamburger, que insiste em usar uma estratégia tradicional de manipulação do aparato fotográfico durante o processo de captação das imagens, não o retira do debate contemporâneo da produção artística que se manifesta por meio da fotografia. Afinal, muito do interesse da fotografia “pós-fotográfica”, ou digital, é a sua capacidade de fazer aflorar de vez o caráter ficcional da imagem, transformando-a em texto em que o referente – quando persiste – passa a ser uma mera sombra, ou um pretexto para a constituição de universos imagéticos propensos a exprimirem inquietações que transcendam os limites da fotografia “direta” e mesmo a expressividade da corrente “humanista” da fotografia do século passado. As fotos de Hamburger vêm provar que é possível manter uma atitude contemporânea frente ao debate artístico sem, necessariamente, valer-se das novas tecnologias de produção de imagens. O que seria uma mera curiosidade, se o artista nada tivesse a acrescentar a esse debate. O que não é o caso de Hamburger cujas fotos têm muito a nos dizer sobre a possibilidade de transcendência na arte de hoje.
Texto publicado no catálogo da exposição ‘Sobre a Permanência’ no Centro da Cultura Judaica – SP, 2009
Feco Hamburger and The Long Time
In the 2004 individual exhibition presented at the Pinacoteca do Estado, entitled “Noites em claro” (Sleepless Nights/Bright-eyed Nights), Feco Hamburger showed a series of photographs in which the main theme was the “long time” of the stars, captured by means of long exposure shots. Another fundamental aspect of the photos exhibited – which both surprised and enchanted the artist – was the presence of a mysterious light in the pictures, even though they had all being taken at night. Here is Hamburger’s account of this experience:
“Instigated by the desire to register the orbit of the stars, I pointed the camera at the valley and waited with the camera open for 35 minutes. Upon developing the film, I was somewhat surprised: the sky was blue, the valley was green, and the spring flowers coloured the shot. The exposure time had not been long enough to capture the stars as I had hoped. But my attention was entirely turned to this apparent mystery: how could the dark of the night be transformed into such a photograph? (…) Long-exposure photography allows the build up of light which exists but is not visible to our eyes in one single photograph, imprinting the registration of time on the film. Unlike our eyes, which rather register instants. And the relationship between the light in darkness, motion and time became the focus of my approach…”
In those photos exhibited in 2004, it was obvious that the enchantment with this new discovery had yet to attain become the main guiding factor in the artist’s search, or in his encounters with his work. Here were pictures of valleys, airports, the curve of a highway, city landscape seen from a window… Evidently the celestial lights were there, just as all mysterious clarity in night photography (yes, this mystery which enchanted Hamburger is due to the photographic medium, not the subject). However, the pedestrian character, let us say, of most of the locations selected to serve as the setting of the photos, was combined with the gravity of the long time of the captured celestial bodies. A combination with highly stimulating aesthetic dividends.
Meanwhile, in the set of photographs that Hamburger now offers for public visitation at the Jewish Cultural Center, the circumstantial element of the chosen settings for the 2004 photos gives way to another situation. Instead of the view from an anonymous apartment window in the big city, or the reflections in the swimming pool of a house, the artist now presents images captured in the deserts of Israel and Jordan. However circumstantial a visit to these places may be, in themselves they possess nothing of the transitory. On the contrary.
The exorbitant dimension of a desert creates in the observer such an overwhelming and powerful sensation that, in the sphere of aesthetics, can only be translated by the concept of “sublime”. Beyond beautiful and far beyond picturesque, the search for the sublime in art has been attempted many times, but rarely attained. In painting, Turner is doubtless one outstanding example. Although I try, I am an unable to find a counterpart in the world of photography, despite several artists having tried both abroad (Edward Weston), and in Brazil (Marc Ferraz).
In some of these new Hamburger photographs, the artist connects the movement of a passing car headlight to the unchanging and timeless vastness of the desert. The “long time” of the desert (the desert is transformed, but in a practically unperceivable way to us) is juxtaposed against the brief time, the quick flux of a light which passes by from afar. However, this car light is only subject to emerging on the image due to the long exposure time of the camera.
Notice the poetic shuffling of Hamburger’s photos: in a place where time seems not to exist, he captures speed (in time and space) by means of a procedure that uses the extension of the ever-swift time of photography with the intention of constructing his visual proposal. In other words, the artist manipulates the medium to construct a fictional discourse on the transitory nature of the immutable or, ultimately, on man and the impossibility of his being eternalized just like the desert is (or seems to be) eternal. Here we have photography parting from the subject, but, by means of manipulation of the apparatus, going beyond to reach an allegorical dimension which is unsuspected at first glance.
In other photographs of the series, the artist juxtaposes the quick rhythm of the stars against the apparent stillness of the desert (photos which establish almost direct relationships to those shown in 2004). The strategy of manipulating the camera used here, transforming the split second of the shutter opening into an extended period of time, capable of capturing the path of the stars, is used to afford the composition rhythm (motion, time). This rhythm, this speed which is actually phoney (phoney because, without the assistance of the camera we would not be able to capture it), places the static nature of the desert of Israel or Jordan (and what matters least here is knowing the identity of the subject) against the fictitious (to our eyes) swiftness of the stars.
It is not common, especially in international contemporary photography, to use tricks as traditional as long exposure in order to produce pictures which are intended to be contemplated outside the voracity of vehicles of communication. Nowadays, in the circuits where photography is used as an art form there is the dominant use of the direct image, purposefully deprived of any “author” index, even though we all know how much the question of authorship still plays a fundamental role on the international art circuit.
Here in Brazil there are also very few artists who make use of long exposure. Still somewhat tied to the need for the photography not to escape the subject (the matter of “national reality” persists as an issue for many photographers), or else linked to experiments with digital media, the strategy adopted by Hamburger is also rarely seen in the work of his local peers.
This uniqueness of Feco Hamburger’s work, with his insistence on using a traditional strategy of camera manipulation during the process of shooting the images, does not remove him from the contemporary debate on photographic artwork. After all, much of the interest in “post-production” or digital photography is its capacity to bring to life the fictional character of the image, transforming it into text in which the subject – when it survives – becomes a mere shadow, or a pretext to the constitution of universes of images that tend to express concerns that transcend not only the limits of “direct” photography, but also the expressiveness of the “humanistic” current of 20th century photography. Hamburger’s photographs have come to prove that it is possible to maintain a contemporary attitude regarding the artistic debate without necessarily making use of the latest image production technologies. Which would be merely a matter of curiosity, if the artist had nothing to add to this debate. Which is not the case of Hamburger, whose photos have plenty to tell us about the possibility of transcendence in art today.
Tadeu Chiarelli, 2009 / On Permanence: Feco Hamburger, São Paulo, CCJ, 2009 – Exh Cat