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Artista, cientista, demiurgo
A poética de Feco Hamburger orbita em torno da imagem, do tempo e da matéria. Subjacente aos procedimentos através dos quais o artista lida com esses três elementos, parece repousar a questão mais fundamental da criação. Tal questão, insistentemente formulada a cada obra do artista, oscila entre a suposição de que o universo é regido por leis – quando o artista flerta com a ciência – e a suspeita de que o acaso é subestimado quando acreditamos agir segundo tais leis – somente na posição de demiurgo o artista pode aventar tal hipótese. As obras de Hamburger reunidas nesta edição da SP-Arte evidenciam as tensões entre acaso e necessidade, entre ciência e criação. Embora tais tensões permeiem grande parte da produção do artista, elas nunca são temas de suas obras. Feco não discursa sobre as leis da criação, seu campo de atuação é a própria criação e, neste sentido, suas imagens podem ser pensadas como os (belos) resíduos desta investigação sobre os processos que dão forma e organizam o universo, da Via Láctea ao centro da Terra.
No tríptico Xingu Áries, vemos um mapa astronômico do céu sobreposto à imagem de uma paisagem noturna – montagem de uma fotografia da margem do rio Xingu com um céu fotografado desde o deserto de Negev, no hemisfério norte. As estrelas inscrevem neste céu linhas curvas que são as medidas do tempo de rotação da Terra. Mas será que as águas do rio Xingu refletem o céu do norte? À primeira vista, parece que estamos diante de um jogo no qual a realidade movente que inscreve as estrelas como linhas e não como pontos na imagem, confronta a estabilidade cartesiana e destemporalizada dos mapas. Mas ao nos darmos conta de que a paisagem que vemos também é uma construção, somos arremessados em uma vertiginosa heterocronia, isto é, em um tempo criado pelo artista na imagem.
As três obras da série Quase meia-noite, também trazem as marcas do gesto demiúrgico de manipulação criadora de imagem, matéria e tempo. Essas composições remetem formalmente ao jogo Tangram mas, de fato, resultam de um modelo de espacialização do tempo geológico. Tal esquema de representação tem a forma de um relógio no qual o tempo presente é fixado na meia-noite, enquanto as diferentes eras geológicas constituem arcos deste círculo. Nesta peculiar representação, apenas o tempo presente é fixo. Em Quase meia-noite, Feco manipula este tempo geológico espacializado e quantificável da ciência chegando a belas composições abstratas mas, além disso, ele cria seus próprios céus sobre o pano de fundo do relógio geológico. A desorganização aleatória das secções do tempo geológico é também a desconstrução de esferas celestes pintadas com aerossóis, conta-gotas e canetas. Estes instrumentos exigem do artista uma sintonia fina, desprovida de ansiedade e desejo de controle, com a matéria, com o tempo e com a imagem.”