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Eclipse
[…] o sol
sumiu do páramo […]¹
A poética de Feco Hamburger, embora inegavelmente catalisada por sua experiência com a fotografia, transborda as especificidades do campo fotográfico e desemboca no caudaloso domínio das imagens. Suas obras nascem por precipitação. Elas não possuem nenhuma realidade anterior aos procedimentos materiais e temporais através dos quais o artista-alquimista cria as soluções nas quais elas vêm a existir, como resíduos de processos nos quais ele negocia sua agência com uma miríade de elementos heterogêneos: raios de luz, aparatos e traquitanas, impressoras, papéis, displays, scanners, água, óleo, sabão, borrifadores etc.
O uso da fotografia por Feco Hamburger aproxima-o de figuras como Eadweard Muybridge e Étienne-Jules Marey que, com seus estudos do movimento, foram pioneiros no uso da imagem fotográfica como instrumento de conhecimento, para além do potencial documental, expressivo e representacional da nova tecnologia ótica. As imagens de Hamburger nascem de impulso similar: o artista não prevê ou calcula grande parte dos fenômenos que vemos em suas obras. Por isso, sua poética é fonte incessante de maravilhamento, convocando-nos à difícil experiência de ver pela primeira vez, em uma época marcada por uma avalanche de imagens que domestica o olhar, reduzindo a visão ao reconhecimento.
Por isso, descrever as obras reunidas em Eclipse implica, para além de alguma fidelidade à pesquisa do artista, certos cuidados: quanto podemos falar sobre uma imagem de modo a produzir uma mediação que não anestesie a curiosidade e o já referido maravilhamento, engendrado pelo enigma do que Feco nos dá a ver? Como produzir um texto que não seja uma âncora para o espectador, sedento por referentes que situem as imagens de Feco no mundo, e ainda pouco familiarizado com o fato de que o artista é inventor de mundos?
Neste sentido, Eclipse, enquanto título desta exposição, deve ser compreendido para além de sua proveniência na série homônima. O evento astronômico, caracterizado por diferentes configurações de luz e sombra em função de alinhamentos transitórios dos corpos celestes, fornece uma bela alegoria do que se passa no espaço experimental de criação de Feco Hamburger, que desalinha continuamente seu olhar em relação ao mundo, especulando eclipses que são invisíveis para a maioria de nós.
A referência astronômica aqui não é nova nem fortuita. Pelo menos desde a série fotográfica Noites em claro (1999-2004), podemos observar o interesse do artista pelo céu como espaço experimental de produção de imagens. Nesta série, aspectos intrínsecos ao processo fotográfico, como o tempo de exposição, mediaram a relação do artista com o céu, que se convertia em uma espécie de lousa na qual as estrelas inscreviam seus movimentos. Este fascinante dispositivo astrográfico reaparece em obras mais recentes, como é o caso de Xingu Áries e Star Trail, nas quais o artista se apropria destes rastros luminosos inscritos indicialmente na imagem para criar cosmologias ficcionais, a partir de diferentes estratégias de tratamento, edição e composição de novas imagens.
A partir da relação ótico-fotográfica com o céu noturno – observável também nos Trovões, em Estudo para via láctea e Hayabusa –, o artista acabou cultivando certa inclinação para cosmogonias especulativas, contudo, mais recentemente este gesto de invenção de mundos se emancipou do céu e passou a investir sobre realidades menores, algumas delas quase banais, mas que parecem conter algo do ordenamento cósmico. Este trânsito entre diferentes ordens de grandeza e escalas temporais reverbera na seleção das obras reunida em Eclipse que, com suas dimensões variadas, cria uma rítmica vertiginosa e desierarquizadora das relações entre as estrelas e os mares, entre as iridescências e as ranhuras do mundo material, ao qual pertencem as imagens de Hamburger.
Se Eclipse preserva o referente celeste, quem acompanha a produção do artista talvez se surpreenda com a ambiência aquática presente em obras como Moby Dick e Anhumas 1 e 2, bem como com o desdobramento lisérgico da liquidez nas Iridescências e Miscibiles. Estes trabalhos nos permitem acessar um aspecto fundamental da pesquisa de Feco Hamburger: o fato de que o que está em jogo é, não somente conhecer o que se apresenta diante da câmera, mas acessar a imagem que surge quando, lançando mão da cultura, nos engajamos com ambientes nos quais, enquanto mamíferos terrestres, somos estrangeiros.
Os pontos brancos que se misturam às silhuetas dos peixes nas Anhumas não são, do ponto de vista estrutural, muito diferentes dos pontos brancos sobre preto que aparecem no céu noturno de Hayabusa, nem dos pontos de poeira depositados sobre uma folha de acetato que é escaneada e engendra os Eclipses sobre céus estrelados. Estes pontos dizem mais de nossa relação, ótica e maquínica, com a luz do que de qualquer realidade extrínseca à imagem. É este olhar arguto para a aparição da imagem que viabiliza a radicalização do gesto demiúrgico do artista em um trabalho como Andrômeda, da série Quase Meia-Noite. Na peça em questão, o artista produz um céu noturno lançando mão de tinta, borrifadores e conta-gotas; agenciando acaso e necessidade, já sem qualquer mediação do aparato fotográfico. Se o universo for mesmo infinito, a veracidade da ordem cósmica que vemos no céu de Andrômeda será apenas uma questão de perspectiva.
É preciso retomar com a devida ênfase a ideia, mencionada brevemente, de que as imagens de Feco Hamburger pertencem ao mundo material. O modo como tais imagens são materialmente produzidas não é uma externalidade à poética do artista, que considera como a data de criação de suas obras o momento em que elas passam a existir objetualmente, e não a data em que se deu o clique fotográfico. Eclipse apresenta três trabalhos nos quais fica evidente o nascimento da obra de Hamburger como resultado de alinhamentos também entre a imagem impressa e seu display. As Miradas, com suas lentes Fresnel, já apresentavam este caráter, que agora se desdobra em também 12 poses e Presente 1, imagens que habitam objetos e nos lembram que não há imagem sem corpo.
Por outro lado, também somos lembrados de que não há corpo que não engendre imagens. Ovo Galado fornece uma síntese elucidativa do investimento de Hamburger nas relações entre imagem e individuação. A misteriosa fotografia, de tonalidades metafísicas, apresenta um ovo fértil, galado, suspenso em uma solução que não nos fornece nenhuma referência espacial ou temporal. A imagem é, ela própria, uma suspensão que reitera o enigma primordial: Quem veio primeiro? O ovo ou a imagem do ovo?
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Há, no Canto 20 da Odisseia, uma famosa passagem na qual o deiforme Teoclímeno descreve um eclipse, durante o último banquete organizado pelos pretendentes de Penélope. O acerto de contas de Odisseu com os homens que ocuparam sua casa e cortejaram sua esposa durante sua longa ausência, desdobra-se na sequência deste misterioso sumiço do sol. Em junho de 2008, astrônomos publicaram um estudo, baseado nos ciclos de outros eventos celestes mencionados no famoso poema de Homero, que conclui que o referido eclipse, bem como o massacre dos pretendentes de Penélope, ocorrera em 16 de abril de 1178 a.C., exatamente dez anos após a queda de Tróia. Gosto de pensar nos astrônomos do futuro estudando e trabalhando para datar os eclipses de Feco Hamburger.
Icaro Ferraz Vidal Jr.
¹HOMERO. Odisséia. Trad. Christian Werner. São Paulo: Ubu Editora, 2018, p. 531.